Andava
soluçando pelos cantos sem compreender, de fato, o que ocorrera. Disse à
empregada que poderia folgar naquele sábado de maio. E decidiu. Decidiu
esquecer Marcelo, pois este não completava mais as suas lacunas amorosas.
Chama-se
Raul e tudo que mais queria era esquecer aquele homem que um dia lhe jurou amor
eterno. Ao rasgar as fotografias percebeu que o seu amor feria-o e insultava:
sentia aquele gosto de sangue descer goela abaixo. Cada soluço era uma tortura
de vida. Preciso esquecê-lo, dizia. Não posso alimentar um amor que só me fez
passar fome, sede, lamentações e ausências de carinho.
Tudo
começou no final do mês de abril. Raul saíra da escola que ministrava aulas de
Literatura. Justamente, naquele dia, tinha trabalhado em sala um poema
belíssimo. Discutiu com seus alunos a importância de amar e ser correspondido.
Ao passo que explanava concepções a respeito do lirismo poético Adeliano, um de
seus alunos questionou:
-
E se todo esse amor se transformar em pó? Como correspondê-lo?
Raul
calado. Não tinha resposta. Ele sabia que amava o Marcelo. Esse, sim, o
correspondia – pobre Raul! Mais tarde ele não saberia mais definir ‘’amor
correspondido’’ – o seu grande amor completava-o como podia: com sorrisos,
afetos, palavras amorosas, boas trepadas e altas doses de regozijo e prazer.
O
aluno insistia na resposta através de um olhar estarrecedor. Percebendo que
este não desistira, Raul respondeu:
-
Se todo este amor se transformar em pó, Lúcio, só nos resta atirar tais
resíduos no mar e seguir a vida.
Raul
assustou-se com a resposta: seguir a vida? Como se segue a vida depois de atirar
aquilo que mais amamos ao mar? Como esquecer-se de quem nos deleita e faz bem?
Voltando
aos soluços incontroláveis de Raul. Não acreditara na cena que vira: uma mulher
alta, loura e de seios fartos adentrou as dependências de seu apartamento. Não
acreditava. O Marcelo teve a cara de pau de levar uma puta para aquele leito
que se tornou sinônimo de amor, festa e deleite? Não aceitava aquela situação!
Ia colocar um ponto final nesta história sem nexo. Não aceitaria ser chifrado
por uma mulher! Tinha que ser com alguém assim, como ele, cheio de desejos
ocultos e laços permissivos.
Ao
entrar no quarto, Raul gritou:
-
Ponha-se daqui para fora, sua vadia! Pensa o quê? Que vai roubar ele de mim?
Não vai mesmo! Ele me ama, ele me quer, ele fode comigo todas as noites! Ele é
meu, só meu! Entendeu? MEU!
A
mulher assustadíssima. Não compreendia aquela situação.
Raul
sempre foi muito ciumento. Não permitia que Marcelo mantivesse uma relação
amigável com ninguém: trabalhar? Não podia. Almoçar na casa de sua mãe? Não podia.
Sair com os amigos do trabalho? Não podia. Criar um cachorro? Não podia.
Marcelo estava, definitivamente, proibido de almejar outros mundos. Tudo tinha
que conspirar a favor de Raul.
Marcelo
tentou explicar, mas gaguejava muito. Estava assustado com aquela situação.
Rosângela, a empregada, correu para saber o porquê de tantos gritos.
A
mulher estava pálida e sem saber o que fazer. Em contrapartida, Marcelo
respirou fundo e começou a explicar:
-
Amor, esta é a Clarissa e vai redecorar o nosso quarto. Não te contei nada
antes porque eu planejava uma surpresa. E, para não estragá-la, avisei a
Rosângela para que ela me ajudasse nesta empreitada.
Raul
não acreditou. Entre soluços e lágrimas, pediu para Marcelo arrumar suas coisas
e sumir de sua vida. A Rosângela não: esta permaneceria. Afinal, segundo o
Raul, esta possuía mais utilidade que o seu cônjuge.
Após
ser expulso de casa, Marcelo arrumou suas coisas, pegou uns poucos pertences e
partiu para a casa da sua mãe. Na hora do jantar, Raul não estava disposto para
nada. Não queria saber de comer. Doía-lhe o fato de Marcelo não devorá-lo com
selvageria aquela noite.
No
dia seguinte, com uma ânsia incontrolável, Raul telefonou para o seu grande
amor. Desta vez quem estava destruindo-se em lágrimas era Dona Isaura, a mãe de
Marcelo. Disse para o ciumento que o seu filho partira. Como assim, partira?
Indagou Raul. Ele suicidou-se, respondeu a pobre senhora.
Raul
não acreditava no que ouvira: o Marcelo suicidou-se por um fútil ciúme? Um
pequeno quebra-pau foi o responsável por uma morte tão indissociável? Raul não
aceitara.
Em
uma carta, Marcelo explicou o motivo pelo qual partiu: estava cansado da vida
ao lado de Raul. Tudo que sentia era desgosto, acidez e desacato. Não era
correspondido a altura por Raul, homem que escolheu amar. Deixou registrado em
papel timbrado tudo que sofreu por causa do ciúme daquele homem incompreensível
que atendia por Raul Lopes Souza e Silva Bernades. Raul não conseguia aceitar
estas palavras reproduzidas por Dona Isaura ao telefone.
-
Não pode ser, Dona Isaura! Não pode ser! Eu o amava! Eu o queria eternamente
para mim! Como uma briguinha pode tornar algo tão grave, ao ponto do meu
Marcelinho deixar de viver?
-
Às vezes, meu filho, o ciúme destrói os mais límpidos sentimentos. É como
remédio: se não tomarmos a dose certa, nosso corpo cai em chão frio por causa
de uma overdose. Você não soube controlar esta terra infértil e meu filho não
resistiu: sofreu por causa de suas sucessivas crises de ciúme. Uma overdose que
culminou com a partida do meu Marcelo, do meu amado e inesquecível bem querer.
Dona Isaura não conseguia conter as lágrimas. Sentia pena e ódio de Raul.
Raul
ordenou que Rosângela não comparecesse ao trabalho no dia seguinte, primeiro
sábado do mês de maio. Mesmo reconhecendo que Marcelo é o amor de sua vida,
decidiu esquecê-lo. Começou a andar por todos os cômodos soluçando
profundamente. Lamentava por seu amado não estar entre os vivos. Cortou a boca
na tentativa de abrir uma garrafa de vinho, o preferido de Marcelo: ao passo
que suas gengivas sangravam, o pobre homem engolia uma mistura de lágrima e
sangue. Lembrou de tudo: das traições, das noites de bebedeira, dos gritos na
madrugada, das agressões, dos cinismos, lembrou quando Marcelo tentou
esfaqueá-lo após recusar-se trepar em uma noite qualquer. Soluçava,
esperneava-se, encostara sua cabeça na perna da mesa e lamentava a ausência
eterna do seu grande amor, do homem de sua vida. Após um momento de reflexão,
enxugou as lágrimas e olhando firme para um Picasso, disse:
-
Do ataque de ciúmes? Disso, sim, eu não me arrependo.